quarta-feira, junho 22, 2011

OS DIAS DE ESPERANÇA

OS DIAS DE ESPERANÇA



O granito é negro, com erupções de cristal a polvilhar a superfície rochosa. A inclinação da parede raramente atinge o angulo recto. Juntas, estas características intimidam bastante.

Placas de granito tombadas, impossíveis de proteger, cuja única forma de progredir consiste em confiar em minúsculas pedrinhas salientes. Movimentos que obrigam a um bom equilíbrio bio-mecânico e mental... sobretudo mental.

A queda está fora de questão. Dependendo do espaçamento entre protecções, uma queda muito dificilmente terá um desfecho terminal mas, a certeza de um esfoliante de pele gratuito e involuntário é suficiente para demover os espíritos mais afoitos, com atracção pelo “movimento limite”. A tão famosa atitude de escalada do “ir à morte!” tem aqui uma expressão muito mais humilde.


Texturas de cristal.


No entanto, cada ascensão é uma realização. Cada escalada significa o culminar de mais uma aventura bem sucedida, antecipada por sentimentos inquietantes e ansiosos.

É assim a escalada na Peneda.

Assim funcionam as coisas na parede da Meadinha.

Pelo menos para mim.


O novo "catrapázio" localizado antes do caminho "dos deuses".


Chegados de uma curta viagem de escalada por Espanha onde as ideias concretizadas ficaram aquém das actividades almejadas, confiámos as nossas almas cansadas ao conforto de um prado orlado pelo tupido da vegetação luxuriante, característica das terras húmidas do Gerês.

Minutos depois de desligar o motor do carro, estafado pelos muitos quilómetros rodados, adormecemos, isolados do frio da noite pelo fino tecido da pequena tenda.

O silêncio do local garantia um descanso tranquilo e reparador.


Tranquilidade...


Escalámos a via “S”.

Esta linha, aberta no ano de 1979 por Santiago Alonso, Bonifacio Lopez e Francisco Garcia, constitui uma obra prima ultra-lógica e intuitiva. É talvez, uma das vias mais escaladas da Meadinha mas, a sua repetição nunca cansa.


A Daniela a iniciar o super-clássico primeiro lance da super-clássica "S".


No mesmo largo.


Na saída do exigente segundo lance da "S".


O acrescento de algumas plaquetes ao numero de spits originais, tornou a linha mais acessível, no entanto, ultrapassar as belas lastras de granito do primeiro lance, lutar com os passos exigentes do diedro horizontal do segundo largo e evitar a placa “impossível” do terceiro lance, revelarão sempre sentimentos que descrevem sem a necessidade das palavras, as emoções repetidas por gerações de escaladores.


O fantástico terceiro lance da "S".


Passinhos precários ao terminar o terceiro lance da "S".


Iniciando o quarto e ultimo lance da "S".


O reino do cristal... e da humidade!

Um queda brusca das temperaturas devolveu-nos o Inverno. Uma chuva miudinha mas intensa arruinou-nos os planos de escalada seguintes.

Era o dia do aniversário da Daniela e o plano consistia em tentar inaugurar uma nova via nesta emblemática parede.


Ainda deu tempo para a Daniela escalar um primeiro largo antes da chuva nos mandar para os circuitos turisticos da região.


Em lugar de nos rendermos à depressão psíquica que a depressão atmosférica insistia impingir, obrigámos o bólide a cruzar a fronteira e rendemo-nos antes a uma deliciosa tapa de “pimientos padrón”, num simpático bar de estrada perdido na Galiza.

Depois, seguiram-se umas horas de turismo “à séria” que nos conduziram a uma centenária quinta vinícola, onde adquirimos uma garrafa de néctar verde alvarinho, após uma visita lúdica ao palácio da Brejoeira, em Monção.

A chuva, ou melhor dizendo, chuvinha, não ofereceu qualquer trégua mas, a jornada terminou com uma agradável sensação de “dia diferente”.

O ultimo dia disponível seria o dia “D”. “D” de Dúvida... “Escalamos simplesmente, ou tentamos abrir a tal via nova?”

“Escalamos ou abrimos?”

“Abrimos ou escalamos?”

Resolvemos tentar a sorte.

“Abrimos!”

Tratava-se de completar um projecto iniciado em 2010. Nessa altura, o dia terminou com a abertura de um primeiro lance e pouco mais.


O primeiro largo da "Esperança" emerge da floresta amazónica.


O estético esporão de saída do primeiro lance.


O alinhamento escolhido adivinhava a obrigação de abandonar um numero elevado de expansivos. Por esse motivo, a decisão de utilizar a “batota” não foi difícil de tomar.

A tática de utilizar a máquina elétrica, mesmo que seja para uma abertura integralmente realizada desde baixo, entrará sempre em conflito com as formas e estilos de escalar paredes. Trata-se de um conflito pessoal interno. Se a escalada escolhida, possui placas grandes desprovidas de fissuras, a colocação de expansivos à mão, consumirá muito tempo. No nosso caso em particular, o muito tempo seria muito mais que um dia de escalada. Esta era uma situação para a qual não dispúnhamos de dias, nem paciência.


O segundo lance começa com dois passos de artifo, passiveis de serem forçados em livre mas... estavamos com pressa...


O compromisso assumido consistiu em utilizar a máquina da forma mais moderada possível, colocando um mínimo de plaquetes.

Era o tudo ou nada. Ou saía no dia ou não sairia de todo, pelo menos nesta viagem.

Foi com este pensamento de urgência latente que enfrentei a placa enorme do segundo lance, armado com a artilharia pesada sob a forma de uma máquina suspensa à bandoleira com um gancho fi-fi, que permitia trabalhar com apenas uma mão disponível, enquanto a outra mão... e os dois pés... tentavam a todo o custo manter o equilíbrio do resto do corpo. Equipar desde baixo em equilibrios precários envolve um certo grau de aceitação ao risco de uma queda aparatosa. As cordeletas evitam que o material se despenhe no vazio mas, também aproximam de uma forma preocupante os tecidos moles do nosso corpo a um objecto pesado, portador de uma broca aguçada. A perspectiva de uma queda, arrastando utensílios desta natureza não ilustram uma imagem agradável no nosso cérebro.

Afastando os pensamentos trágicos, a escalada foi evoluindo de forma mais ou menos célere.


A abrir a grande placa do segundo largo. Os estribos serviram para a abertura. Não serão necessários para a repetição. Em livre? É possivel mas, será duro!



Um ponto vermelho no granito.


A Daniela aí vêm...


A grande placa foi ultrapassada e uma rápida fissura em diedro permitiu um respiro.

Pouco depois, enfrentámos um exigente terceiro lance de fissura... melhor dizendo, fissura-chaminé que, surpreendentemente, apenas obrigou a utilizar a técnica clássica (e incómoda) de escalada em oposição “rabo-costas-joelhos”, lá para o seu final.

Uma plaquete estrategicamente colocada protegeu o inicio do quarto largo, local onde se situam as maiores dificuldades deste ultimo lance. Daí para cima, restaram apenas metros de escalada amena, obviando convenientemente os tapetes de musgo e culminando no topo de longas vistas do flanco direito da Meadinha.

A foto da praxe precedeu a busca da ultima reunião da via “Puerta sur de los dioses”, por onde contávamos descer em rapel.


Foto-cume!


Um parêntesis para dizer que a “Puerta sur de los dioses” representa uma fantástica linha natural que bem merece um lugar de destaque no panteão das melhores vias da Meadinha.


Foto-tonta. Na linha de rapel.


Aberta em 2008 por Miguel Silva e Filipe Sequeira, esta é sem duvida uma escalada inteligente que vai em busca da grande fissura central mais que evidente.

Para mim, a surpresa desta via está no terceiro largo, onde uma travessia de aparência duvidosa, por baixo de um tecto, revela duas fissuras paralelas horizontais, uma para as mãos, a outra para os pés, que permitem a protecção perfeita e a progressão rápida e fácil. Por antagonismo, o lance seguinte é mais lento e difícil (dependendo, claro está, do nível do escalador) mas, de uma lógica espectacular.

Desta feita, a Daniela e eu realizámos a “Puerta sur de los dioses”... em sentido inverso. As reuniões perfeitamente equipadas conduziram-nos até ao solo, onde empacotando o material nas mochilas saboreámos uma nova via escalada na Meadinha.

Uma pequena consolação, para animar um pouco os espíritos cansados das decepções do ultimo mês... mas isso é outra historia!


Os Topos


Croquis emprestado do site www.meadinha.com, apenas utilizado para efeitos de referência da via proposta.





Ficha técnica:

A “Esperança” foi aberta desde baixo com a utilização da máquina para colocar os parabolts M10 existentes. Infelizmente, não possuíamos material em inox, por isso as únicas protecções em inox existentes foram as colocadas no ano passado, aquando da primeira tentativa de abertura em que foram inaugurados o primeiro e o inicio do segundo lance.

A via inicia uns 20 metros à direita do acesso para a via “Puerta sur de los dioses”, por um esporão de rocha que nasce praticamente no final do trilho de acesso. A visão do inicio está semi-coberto pela floresta e está constituída por uma fissura inicial em meia lua para a esquerda, logo seguida de uma quilha protegida por uma plaquete.

Apesar de se encontrar perfeitamente “repetível” com o presente nível de musgo, uma limpeza futura considerável irá permitir um maior desfrute desta linha e, a possibilidade de se forçar a escalada livre na totalidade do seu comprimento.

A descida realiza-se em rapel através das reuniões da “Puerta sur de los dioses”.



Paulo Roxo

3 Comments:

sesa said...

Parabéns pela nova via no yosemitra tuga! Pelo croqui tem muito boa pinta. A ver se vamos lá provar em breve.

Abraço
Abismados

P.s O coelho-trôpego não vos importunou? é que ouvimos rumores que ele tem andado activo por estes dias...

Anónimo said...

Obrigado!

Não fora uma chuva inesperada tinhamos deitado a mão ao coelho-trôpego.

Abreijos.

Paulo Roxo

Anónimo said...

É assim mesmo!! A ver se coincidimos um dia destes, num qualquer encontro da velhada!!!!
Aquele abraço e parabéns pela via
João Animado